Partitura – Abril 2024

“A poesia está na rua”, disse Sophia, enquanto observava a liberdade a esboçar-se no sorriso de um país inteiro. Mas o êxtase durou pouco. “O pecado do poder destruiu esse estado de graça” e a poesia “foi rapidamente empurrada para dentro de casa”. 50 anos depois, não mais os portugueses a viram como ali, livre e pulsante, nua e feliz, confiando no vento. Essa partitura não foi escrita, caso contrário poderia ser hoje tocada de novo, mas, tal como nenhum horizonte é o último, também a poesia nos sobrevive. Outra Partitura, esta que tem em mãos, trazia na sua edição de março um eco da desilusão de Sophia: “O problema que temos e teremos sempre é o problema do poder. Enquanto não o vencermos, não acabaremos com os conflitos”. Uma opinião expressa por Ricardo Ribeiro, como que explicando o fado do 25 de Abril. Mas sem fatalismos. Até porque, em jeito de “we’ll always have Paris”, lembrava então o fadista, ainda há a música: “E a música não tem definições de poder nem de hierarquia. Eu, como músico e cantor, não estou interessado em ter poder sobre coisa nenhuma. Tenho é a necessidade de que a música e a poesia se apoderem de mim”.

50 anos depois, nestas palavras reverbera “o dia inicial inteiro e limpo” de Sophia. Que a música e a poesia se apoderem de nós, eis a prece a que damos corpo em mais uma edição, ou melhor, numa edição muito especial do festival Música & Revolução, iniciada precisamente sob a égide de Sophia de Mello Breyner Andresen, em cujos poemas dedicados ao 25 de Abril o compositor português Daniel Moreira se inspirou para escrever a obra que apresentamos em estreia mundial – uma encomenda da Casa da Música. Podemos, mais adiante, ler o próprio falando sobre ela numa entrevista conduzida pelo musicólogo Pedro Almeida. Entre revelações como a harpista Maria Sá Silva, a quem este jornal confia a rubrica A Solo, o festival lembra a arte de Jorge Peixinho, Fernando Lopes-Graça, Constança Capdeville e Emmanuel Nunes, figuras tutelares da nova música em Portugal, e o legado incomparável de Zeca Afonso.

Em abril, noutro contexto, merece também destaque um concerto dos “revolucionários” britânicos Sleaford Mods, seguido de um live act do DJ e produtor alemão Boys Noize. Disso e da restante programação lhe dá conta, em detalhe, a nossa Pauta. Por aqui encontra ainda um artigo esclarecedor do musicólogo e investigador Ivan Lima sobre a história e a importância da canção de intervenção em Portugal e no Brasil, bem como, a fechar, uma pequena homenagem a Vicente Lusitano, renascentista português que foi o primeiro compositor negro a ter música publicada e cuja verdadeira importância ficou por reconhecer, séculos fora, até há bem pouco tempo.

Mas nada como ir pelos seus dedos e descobrir, página e página, as linhas com que se cose este histórico mês de abril na Casa da Música. Viva a liberdade!

TÓNICA

Música & Revolução 2024

MÚSICA & REVOLUÇÃO

O festival Música e Revolução viu as luzes do palco pela primeira vez a 25 de Abril de 2007, e não se chamou Revolução em Música porque se quis deixar em aberto todas as conjugações possíveis entre as revoluções e as músicas. Pode ser música revolucionária, podem ser revoluções políticas ou sociais postas em música; canções de intervenção ou música associada a momentos históricos de mudança; composições censuradas, compositores proscritos; música desafiante e de grande qualidade, sempre.

OUVIDO ABSOLUTO

PA – Bom dia, Daniel, obrigado pela disponibilidade. Queria começar por lhe perguntar o que significa receber uma encomenda deste teor.

DM – É um desafio muito grande, e uma responsabilidade também… E é a possibilidade de fazer música para uma ocasião que nos diz muito enquanto pessoas. 

PA – O Daniel, tal como eu, é de uma geração que não viveu a revolução. A nossa forma de olhar para o 25 de Abril não será a mesma de quem o viveu, ou de quem esteja mais longe ainda dessa fase da história. Também por isso, fico curioso quanto à sua perspetiva.

DM – O 25 de abril foi muito importante para a minha família mais próxima, em grande parte composta por contestatários do regime. O meu avô materno foi, inclusivamente, várias vezes preso pela PIDE e torturado. Então eu cresci com essas histórias. Em certa medida, para mim, fazer uma peça sobre a revolução foi também voltar aí, às memórias da minha família.

“TENTEI QUE A MÚSICA REFORÇASSE AS IDEIAS DOS POEMAS”

A SOLO

Maria Sá Silva

VENTOS NOVOS EM FLORES ETERNAS

Olhando para trás, é-me difícil acreditar que apenas quatro anos distam desde o momento em que pela primeira vez entrevi o universo musical de Carlos Paredes. Certamente o explicará a distância que no tempo me separa do Mestre, associada à incompreensível, digo-o hoje, pouca atenção que a sua obra tem merecido. Mas foi imediato o fascínio pela emoção que suscita – as melodias simples que tomam o ouvido de assalto; os temas nostálgicos e melancólicos que nos enredam no eterno confronto entre os sentimentos de perda e a recordação-prazer de ter vivido o momento, próprios do fado de Coimbra; as raízes portuguesas feitas som; o brilhantismo da complexidade técnica que apenas nos deixa espaço para admirar um virtuosismo que elevou a guitarra portuguesa a instrumento solista. Paredes oferece-nos um caleidoscópio de sons, tanto inteiramente novos como re-perspetivados, que nos mergulha numa jornada pelo ser português e a mim abriu as portas a uma singular vontade criativa. Mas o que penso verdadeiramente tornar única a música de Paredes é o seu fraseado exímio, a singular brilhante alternância entre a intensidade sonora e os momentos de silêncio, num jogo de tensão/distensão que conduz o ouvinte a crer que da guitarra brota um canto que por vezes se emociona em choro.

OUTRAS BATIDAS

Bandas sonoras para revoluções existem várias. Versos e músicas associadas a movimentos sociais são comuns. Mas uma canção ser uma senha revolucionária é mesmo algo muito particular, e isto aconteceu em 25 de Abril de 1974. Quase um mês antes da revolução, no dia 29 de março, em pleno Coliseu dos Recreios em Lisboa, “Grândola, Vila Morena” recebeu dos capitães e demais militares que deflagrariam o florescer da primavera democrática a missão de converter-se em código e símbolo da revolução. Mas a escolha de uma música como dispositivo revolucionário não foi à toa. Canções de protesto já circulavam em Portugal havia mais de uma década, através de corajosas vozes, mãos e ações em sindicatos, fábricas, comícios clandestinos, rodas de amigos e iniciativas operárias. José Afonso, Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire, Francisco Fanhais e muitos outros cantores atuavam em vários destes espaços, usando a cantiga como uma arma de consciência, a favor da liberdade política, da liberdade dos povos e, principalmente, na luta contra o fascismo. Esses artistas cantaram e enfrentaram o regime dentro do país usando a arte como resistência. Mas a canção de protesto também chegou a Portugal por aqueles que estavam no exílio, pelos que não aceitaram ir à guerra colonial. Vários cantores de intervenção produziram a partir de outros lugares do mundo, sobretudo da França, músicas de resistência ao fascismo e à ditadura portuguesa.

CRAVOS DA LIBERDADE: A CANÇÃO NA REVOLUÇÃO

VICENTE LUSITANO

“Não foi possível encontrar o que procurava”. No motor de pesquisa a procura é o nome de um compositor: Vicente Lusitano. O repositório? Um arquivo onde se encontram catalogados todos os compositores interpretados nos concertos dos agrupamentos residentes da Casa da Música e de outras formações que integraram a programação artística desde 2005. Ao todo, já são quase 9500 entradas, com repertório que percorre praticamente toda a história da música ocidental. No entanto, esta será a primeira oportunidade para escutar na Sala Suggia uma obra de Vicente Lusitano, compositor português negro do século XVI que tem fascinado investigadores em Portugal e não só. Mas quem foi, afinal, Vicente Lusitano?