Cravos da Liberdade: A Canção na Revolução

Em vésperas de defender uma tese de doutoramento sobre as canções de protesto em Portugal e no Brasil entre 1964 e 1974, o investigador e musicólogo Ivan Lima Cavalcanti aborda o tema a propósito dos 50 anos do 25 de Abril.

Bandas sonoras para revoluções existem várias. Versos e músicas associadas a movimentos sociais são comuns. Mas uma canção ser uma senha revolucionária é mesmo algo muito particular, e isto aconteceu em 25 de Abril de 1974. Quase um mês antes da revolução, no dia 29 de março, em pleno Coliseu dos Recreios em Lisboa, “Grândola, Vila Morena” recebeu dos capitães e demais militares que deflagrariam o florescer da primavera democrática a missão de converter-se em código e símbolo da revolução. Mas a escolha de uma música como dispositivo revolucionário não foi à toa. Canções de protesto já circulavam em Portugal havia mais de uma década, através de corajosas vozes, mãos e ações em sindicatos, fábricas, comícios clandestinos, rodas de amigos e iniciativas operárias. José Afonso, Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire, Francisco Fanhais e muitos outros cantores atuavam em vários destes espaços, usando a cantiga como uma arma de consciência, a favor da liberdade política, da liberdade dos povos e, principalmente, na luta contra o fascismo. Esses artistas cantaram e enfrentaram o regime dentro do país usando a arte como resistência. Mas a canção de protesto também chegou a Portugal por aqueles que estavam no exílio, pelos que não aceitaram ir à guerra colonial. Vários cantores de intervenção produziram a partir de outros lugares do mundo, sobretudo da França, músicas de resistência ao fascismo e à ditadura portuguesa. Nomes como José Mário Branco, Luís Cília e Sérgio Godinho gravaram e produziram canções que aqui chegaram para ampliar a força da canção de protesto. Fonogramas que se tornariam sucessos da música portuguesa, como “Maré Alta”, “Charlatão” e “Que Força é Essa”, foram todos gravados e produzidos no estrangeiro. É também curioso saber que a senha revolucionária do 25 de Abril foi gravada e mixada no país da “Marselhesa”, três anos antes de se tornar a tal senha política.

Os cantores de intervenção de cá também tiveram várias ligações com os brasileiros. Ambos compartilhavam as aflições dos governos opressores, já que o Brasil vivia uma ditadura desde 1964, e juntos usaram a canção e a língua portuguesa como mecanismo de solidariedade e luta. Um exemplo desta colaboração foi o encontro de José Mário Branco, na França, com Chico Buarque e Geraldo Vandré, sendo que com o segundo chegou a compor uma música. Também ilustra a conexão Portugal-Brasil durante suas ditaduras o sucesso do grupo Secos e Molhados, que tinha como fundador o português João Ricardo, e que musicou vários dos poemas do seu pai e jornalista João Apolinário. São emblemáticas também as gravações de “Grândola, Vila Morena” por Nara Leão no Brasil meses depois do 25 de Abril (e que foi censurada pelo temor de essa canção também tomar proporções revolucionárias em terras brasillis) e a antológica gravação, pouco depois da revolução, de “Tanto Mar” por Chico Buarque. Esta última é uma ode à exitosa vitória do movimento dos capitães de Abril. O cheirinho de alecrim emanado por Chico completa agora cinquenta anos, e certamente ainda traz na canção um pulverizador de liberdade, democracia e resistência.

Enquanto herdeiros de Zeca Afonso, celebremos o cinquentenário dos cravos sempre tendo a consciência de que não há conquistas irreversíveis. A cantiga é uma arma, nós sabemos disto e dela precisamos como nunca.