Partitura · Fevereiro 2025
A 28 de dezembro de 1895, em Paris, os irmãos Lumière faziam a primeira projeção pública dos seus filmes, com um pianista a acompanhar ao vivo o fluir das imagens. Num mesmo gesto, dava-se início a uma arte – o cinema – e a um romance inquebrantável entre ela e a música. Para a chegada do primeiro filme sonoro, por sinal um musical (The Jazz Singer, de Alan Crosland), foi preciso esperar mais de 30 anos, mas nem essa inovação tecnológica dispensou o modelo a que hoje se dá o nome de cine-concerto.
E é assim que, em 2025, 130 anos depois do nascimento do cinema, o ciclo Invicta.Música.Filmes continua a trazer-nos pérolas do tempo do mudo e a exibi-las com acompanhamento musical ao vivo. Obra clássica do expressionismo alemão, o filme O Gabinete do Dr. Caligari, de Robert Wiene, é o senhor que se segue, numa projeção com banda sonora do compositor austríaco Wolfgang Mitterer tocada em simultâneo pelo Remix Ensemble.
Já a Orquestra Sinfónica, que dias antes interpreta êxitos musicais celebrizados pela fábrica de sonhos que é Hollywood, entra em fevereiro a tocar a Quarta Sinfonia de Brahms, num concerto comentado, e prossegue a sua atividade com programas irrecusáveis: um primeiro de homenagem a Maurice Ravel, de cujo nascimento se comemora o 150.º aniversário, e um segundo, na companhia da violinista húngara Júlia Pusker, encimado pelo Concerto para violino e orquestra de Tchaikovski.
O Ciclo Piano prossegue com um recital de Lukas Sternath, nomeado como ECHO Rising Star para a temporada 2024/25. O jovem pianista austríaco estreia em Portugal uma partitura que lhe foi dedicada pela celebrada violinista Patricia Kopatchinskaja, dando-nos ainda a escutar obras de Brahms, Liszt e Sofia Gubaidulina.
De contextos diferentes da música chegam também propostas a não perder. É o caso do concerto único em formato trio dos Calexico, a idiossincrática banda norte-americana com sabor a deserto, a mistério e, já que estamos no mês dele, a cinema. Mas há outros exemplos de citação obrigatória, como o muito celebrado compositor pernambucano Alceu Valença, que se faz acompanhar da Orquestra Ouro Preto, ou a cantora e saxofonista britânica Nubya Garcia, figura de brilho ímpar na constelação de artistas que urdiram o fenómeno da moderna cena jazz londrina.
Quanto aos nomes portugueses, podemos falar de Milhanas: a renovadora do fado regressa para fechar o capítulo do seu primeiro álbum, De Sombra a Sombra, e entusiasmar a assistência com canções novas que deverão fazer parte do sucessor. E, claro, não há como esquecer Vitorino: cinquenta anos depois do “primogénito” Semear Salsa ao Reguinho, o cantor alentejano traz consigo o álbum mais recente, Não sei do que é que se trata, mas não concordo, alimentado por grandes nomes da nossa poesia.
Debaixo de olho devem estar também, como sempre, as atividades do Serviço Educativo, este mês divididas entre oficinas e concertos de tipologia diversa, um dos quais um cine-concerto – Vejam Bem – integrado no cartaz do Invicta. Música.Filmes. O 16.º Curso Livre de História da Música, por sua vez, arranca para o segundo módulo sob o tema “Mulheres na Música”, que recoloca alguns pontos nos is da ignorância generalizada em relação ao contributo inestimável de mulheres geniais para a arte de organizar os sons.
Finalmente, é de saudar o regresso dos concertos no café, de entrada livre, onde a cada ano artistas e bandas emergentes se dão a conhecer e projetos consagrados fazem a festa da música em comunhão com o público.
INVICTA.MÚSICA.FILMES
15 – 18 FEV
TÓNICA
Quem nunca se cruzou com a música de Ravel? É provável que reconheça um pouco do famosíssimo Boléro, mesmo que não se recorde de onde e que não lhe associe um título ou uma autoria, tal é a sua difusão no cenário quotidiano. A grande ironia é que a mais célebre peça de Ravel é também uma das mais sui generis do seu catálogo – um exercício de orquestração, acima de tudo –, que não representa de todo o imaginário musical do seu autor. Neste 150º aniversário de Ravel, convidamos o público a deixar-se levar por alguns dos lugares mais encantadores do mundo único, pessoal e irresistível que nos deixou.
A POESIA CORTANTE DE UM AMOLADOR
À luz de hoje, em que o espectro da extinção se abate sobre um conjunto de profissões outrora indispensáveis, seria mais fácil descortinar o significado profundo de uma obra como Experimentum Mundi, de Giorgio Battistelli, do que aquando da sua estreia na Casa da Música, a 30 de março de 2013. Com o subtítulo “Uma dramaturgia do trabalho”, a peça, escrita em 1981, trazia já um lastro de 400 apresentações, coisa rara no contexto da música contemporânea, mas apenas uma vez o compositor italiano havia aceitado trabalhar com um elenco local. E que elenco: tanoeiros, carpinteiros, amoladores, ferreiros, calceteiros, sapateiros, trolhas, um pasteleiro, um pedreiro, um coro comunitário feminino, um percussionista e um ator-recitante. Entre as premissas de Experimentum Mundi destacava-se justamente a de “provocar” o sistema mensurável da música erudita ocidental com os ritmos assimétricos dos ofícios artesanais – e, pelo caminho, proporcionar aos artesãos uma compreensão diferente da importância do que faziam, da dignidade e história das suas mestrias.