Música & Revolução 2024
O festival Música e Revolução viu as luzes do palco pela primeira vez a 25 de Abril de 2007, e não se chamou Revolução em Música porque se quis deixar em aberto todas as conjugações possíveis entre as revoluções e as músicas. Pode ser música revolucionária, podem ser revoluções políticas ou sociais postas em música; canções de intervenção ou música associada a momentos históricos de mudança; composições censuradas, compositores proscritos; música desafiante e de grande qualidade, sempre.
Em 2007, comemorava-se o 20.º aniversário da morte de José Afonso – não se conseguirá imaginar escolha mais óbvia para a primeira edição do festival. A abertura ficou nas mãos do Drumming – Grupo de Percussão, que transformou este repertório fundamental com arranjos para steel drums (literalmente “tambores de aço”, instrumento originário de Trinidad e Tobago). Quem pudesse ter alguma dificuldade em digerir a heresia teria oportunidade de ouvir Zeca Afonso com outros contornos, de um concerto de jazz com Zé Eduardo, Maria João e Mário Laginha a um arranjo de Vasco Mendonça para o Grupo Vocal Olisipo. Além desta música obrigatoriamente situada à volta do 25 de Abril, as referências a outras grandes revoluções políticas da Humanidade vieram com a Heróica de Beethoven – Revolução Francesa – e a Cantata para o 20.º Aniversário da Revolução de Outubro de Prokofieff – Revolução Bolchevique. Ouviu-se também Fernando Lopes-Graça e muitos outros compositores portugueses, e o festival encerrou com um concerto memorável de José Mário Branco, que fez uma versão actualizada do célebre FMI – mal sabia ele, e nós, o que nos esperava.
O mote do Música e Revolução 2008 foi “músicas que revolucionaram a música” – sem efemérides associadas, o caminho delineou-se naturalmente por momentos definidores da história da música. E iniciou-se mais uma vez com um desafio: o Poema Sinfónico para 100 metrónomos de Ligeti. Depois, percorreu-se um conjunto de obras-chave de Debussy, Wagner, Stravinski, Schoenberg e Stockhausen. Quais? Precisamente aquelas que de forma inescapável mudaram o rumo da história: Prélude à l’après midi d’un faune, Prelúdio e Morte de Isolda, Sagração da Primavera, Pierrot Lunaire e Zeitmasse, respetivamente. Mas também Charlie Parker e Thelonious Monk, dois visionários que inspiraram toda uma geração a mudar os contornos do jazz, foram celebrados em concertos especiais de Jason Moran e Bernardo Sassetti, este último uma encomenda da Casa da Música. As revoluções do rock tiveram a voz de Rui Reininho, encerrando o festival numa noite de Clubbing com os Einstürzende Neubauten, banda icónica do rock industrial.
Em 2009 homenageou-se Stockhausen apresentando obras tão grandiosas quanto Gruppen para três orquestras e Stimmung para seis cantores – esta pelo Neue Vocalsolisten Stuttgart, agrupamento convidado que cantou também a Sinfonia de Berio. O programa circulou à volta do ano de 1968, celebrando as canções do Maio de 68 e relembrando o Movimento dos Direitos Civis nos Estados Unidos, com a música de Curtis Mayfield retomada por William Parker e a presença dos históricos The Last Poets. Foi um ano fortemente político, em que até um maestro acabou um concerto a cantar a Internacional.
O compositor Jorge Peixinho faria 70 anos em 2010, e o Música e Revolução não quis deixar de homenagear o pai da Vanguarda portuguesa, trazendo não só a sua música como também o grupo que fundou – o Grupo de Música Contemporânea de Lisboa. Com apenas alguns meses de existência, o Coro Casa da Música lembrou a Revolução Coral dos Estados Bálticos, vinte anos depois do cordão humano de dois milhões de pessoas que uniu a Estónia, a Letónia e a Lituânia contra o domínio da União Soviética. Mais uma vez o festival encerrou com um concerto bem apropriado ao 1.º de Maio, com Fausto Bordalo Dias, um nome fulcral da música popular portuguesa, indissociável dos movimentos culturais e sociais que sobrevieram da Revolução dos Cravos.
A partir de 2011, algo muda no Música & Revolução – e não nos referimos apenas ao &, mas ao País Tema que passa a estar na origem do mote do festival. Assim, o ano dos Estados Unidos da América trouxe a estreia portuguesa da versão original de Amériques, a obra seminal de Edgard Varèse. Visitou-se ainda três gerações de influentes provocadores americanos – John Cage, Frank Zappa e John Zorn – e relembrou-se uma das palavras de ordem mais poderosas de todas as revoluções: “O povo unido jamais será vencido”, transformado em canção pelo chileno Sergio Ortega e em 36 Variações para piano por Frederic Rzewski. Rupturas e novos rumos para a música do nosso tempo nasceram com os desafios propostos por figuras como Debussy, Ravel, Messiaen e Boulez, e o Ano França no Música & Revolução apresentou algumas das obras mais significativas destes e doutros compositores. Mas não se pense que só as revoluções modernas têm aqui lugar garantido. Se o Ano Itália trouxe nomes maiores do século XX – casos de Luciano Berio e Luigi Nono –, voltou-se também para revolucionários italianos de há cinco séculos: Monteverdi e Gesualdo, além da música espacializada da Veneza renascentista com Gabrielli.
Em 2014, o centenário da Primeira Guerra Mundial dá lugar a um Música & Revolução sob o mote “Música e Conflito”, percorrendo momentos cruciais da história ocidental em música de compositores desde Monteverdi até Georges Aperghis – com a estreia mundial de Le soldat inconnu pelo Remix Ensemble e o barítono Lionel Peintre – mas também os ritmos de dança dos Balcãs com Goran Bregovic.
Nos dois anos que se seguiram, a programação voltou-se para Países Tema inspiradores como poucos: a Alemanha e a Rússia. Campo fértil para explorar no Música & Revolução, primeiro com as músicas proibidas pelo III Reich, depois com as obras condicionadas pelo Realismo Socialista – Chostakovitch e Prokofieff, claro – ou aquelas que se viram também proscritas no regime soviético.
2017 ficaria marcado na história política recente pela saída do Reino Unido da União Europeia, o Brexit. Acaso do destino, foi nesse ano que a Casa da Música se deixou orientar pelos tesouros da história da música britânica. Se este acontecimento político viria a abalar os alicerces europeus, o Música & Revolução de 2017 teve como ponto de partida o polémico festival britânico Proms que, desde a sua fundação, originava verdadeiros escândalos entre o público, tamanha era a indignação sentida ao escutar aquelas obras. Pela Casa da Música passaram as peças Panic, de Birtwistle, Worldes Bliss,de Peter Maxwell Davies, e também obras de John Adams ou Arnold Schoenberg, igualmente apresentadas nesse festival.
Homenagear as mais diversas facetas criativas de compositores marcantes da história europeia ocidental assumiu-se como a estratégia programática dos anos que se seguiram. Em concertos com os agrupamentos residentes, acompanhados por prestigiados solistas, ou em propostas de música de câmara e recitais a solo, o festival propôs um mergulho a fundo na música de Schoenberg (2018), Ligeti (2019), Nono (2021) e Stockhausen (2023).
Pelo meio, em 2022, a Casa tomou como narrativa central o Amor e, talvez por isso, o Música & Revolução apontou para um lado mais humano, com foco na história que se faz nas ruas. Teve como ponto de partida o vibrante ano de 1968 e as suas lutas contra a sociedade conservadora, as frágeis condições de trabalho, as guerras ou a discriminação. Orquestra Sinfónica, Remix Ensemble e Coro Casa da Música ofereceram uma retrospetiva da música escrita nesse mesmo ano por muitos dos compositores mais relevantes da Europa e das Américas, dando a ouvir doze obras-primas que marcaram o último meio século e espelharam a pluralidade estética da época.
Chegado a 2024, o Música & Revolução tem inevitavelmente como força motriz o 25 de Abril e a comemoração dos seus 50 anos.
The Music and Revolution festival saw the light of the stage for the first time on 25 April 2007, and it wasn’t called Revolution in Music because we wanted to leave open all the possible combinations between revolutions and music. It could be revolutionary music, it could be political or social revolutions set to music; intervention songs or music associated with historical moments of change; censored compositions, outlawed composers; challenging music of great quality, always.
2007 was the 20th anniversary of José Afonso’s death – you couldn’t think of a more obvious choice for the first edition of the festival. The opening was in the hands of Drumming – Grupo de Percussão, who transformed this fundamental repertoire with arrangements for steel drums (literally “steel drums”, an instrument originally from Trinidad and Tobago). Anyone who might have had difficulty digesting the heresy would have had the opportunity to hear Zeca Afonso in other guises, from a jazz concert with Zé Eduardo, Maria João and Mário Laginha to an arrangement by Vasco Mendonça for the Olisipo Vocal Group. In addition to this music, which must be set around the 25 April, references to other great political revolutions of humanity came with Beethoven’s Eroica – French Revolution – and Prokofieff’s Cantata for the 20th Anniversary of the October Revolution – Bolshevik Revolution. We also heard Fernando Lopes-Graça and many other Portuguese composers, and the festival closed with a memorable concert by José Mário Branco, who performed an updated version of the famous IMF – little did he, and we, know what was in store for us.
The motto of Music and Revolution 2008 was “music that revolutionised music” – with no associated ephemeris, the path led naturally through defining moments in the history of music. And it began once again with a challenge: Ligeti’s Symphonic Poem for 100 Metronomes. We then travelled through a range of key works by Debussy, Wagner, Stravinski, Schoenberg and Stockhausen. Which ones? Precisely those that inescapably changed the course of history: Prélude à l’après midi d’un faune, Prelude and Death of Isolde, The Rite of Spring, Pierrot Lunaire and Zeitmasse, respectively. But also Charlie Parker and Thelonious Monk, two visionaries who inspired a whole generation to change the shape of jazz, were celebrated in special concerts by Jason Moran and Bernardo Sassetti, the latter a commission from Casa da Música. The revolutions of rock had the voice of Rui Reininho, closing the festival on a Clubbing night with Einstürzende Neubauten, an iconic industrial rock band.
In 2009 Stockhausen was honoured by presenting such great works as Gruppen for three orchestras and Stimmung for six singers – the latter by the Neue Vocalsolisten Stuttgart, a guest ensemble that also sang Berio’s Symphony. The programme revolved around 1968, celebrating the songs of May 68 and recalling the Civil Rights Movement in the United States, with the music of Curtis Mayfield taken up by William Parker and the presence of the historic The Last Poets. It was a highly political year, in which even a conductor ended a concert singing the Internationale.
Composer Jorge Peixinho would have turned 70 in 2010, and Música e Revolução wanted to honour the father of the Portuguese avant-garde by bringing not only his music but also the group he founded – the Lisbon Contemporary Music Group. Only a few months old, Coro Casa da Música remembered the Baltic States Choral Revolution, twenty years after the human cordon of two million people that united Estonia, Latvia and Lithuania against the domination of the Soviet Union. Once again, the festival closed with a concert very appropriate to the 1st of May, with Fausto Bordalo Dias, a very important name in Portuguese popular music who is inseparable from the cultural and social movements that emerged from the Carnation Revolution.
From 2011 onwards, something changed at Música & Revolução – and we don’t just mean the &, we mean the Theme Country that became the motto of the festival. Thus, the year of the United States of America brought the Portuguese premiere of the original version of Amériques, Edgard Varèse’s seminal work. We also visited three generations of influential American provocateurs – John Cage, Frank Zappa and John Zorn – and remembered one of the most powerful slogans of all revolutions: “The people united will never be defeated”, transformed into song by the Chilean Sergio Ortega and into 36 Variations for piano by Frederic Rzewski. Ruptures and new directions for the music of our time were born with the challenges proposed by figures such as Debussy, Ravel, Messiaen and Boulez, and the Year of France in Music & Revolution presented some of the most significant works by these and other composers. But don’t think that only modern revolutions have a guaranteed place here. While the Year of Italy brought the biggest names of the 20th century – such as Luciano Berio and Luigi Nono – it also focused on Italian revolutionaries from five centuries ago: Monteverdi and Gesualdo, as well as the spatialised music of Renaissance Venice with Gabrielli.
In 2014, the centenary of the First World War gave way to Music & Revolution under the motto “Music and Conflict”, travelling through crucial moments in Western history in music by composers from Monteverdi to Georges Aperghis – with the world premiere of Le soldat inconnu by the Remix Ensemble and baritone Lionel Peintre – but also the dance rhythms of the Balkans with Goran Bregovic.
In the two years that followed, the programme turned to inspiring Theme Countries like few others: Germany and Russia. Fertile ground to explore in Music & Revolution, first with the music forbidden by the Third Reich, then with the works conditioned by Socialist Realism – Chostakovich and Prokofieff, of course – or those that were also outlawed under the Soviet regime.
2017 would be marked in recent political history by the departure of the United Kingdom from the European Union, popularly known as Brexit. As fate would have it, it was in that year that Casa da Música allowed itself to be oriented by the treasures of British music history. If this political event was to shake the foundations of Europe, Music & Revolution 2017 took as its starting point the controversial British Proms festival which, since its foundation, has caused real scandals among the public, such was the indignation felt when listening to those works. Birtwistle’s Panic, Peter Maxwell Davies’s Worldes Bliss and works by John Adams and Arnold Schoenberg, also performed at the festival, have passed through Casa da Música.
Honouring the most diverse creative facets of outstanding composers in Western European history became the programme strategy for the years that followed. In concerts with the resident ensembles, accompanied by prestigious soloists, or in chamber music proposals and solo recitals, the festival offered a deep dive into the music of Schoenberg (2018), Ligeti (2019), Nono (2021) and Stockhausen (2023).
In between, in 2022, Casa da Música took Love as its central narrative and, perhaps for this reason, Música & Revolução pointed to a more human side, focusing on the history that is made in the streets. It took as its starting point the vibrant year of 1968 and its struggles against conservative society, fragile working conditions, wars and discrimination. Orquestra Sinfónica, Remix Ensemble and Coro Casa da Música offered a retrospective of the music written that same year by many of the most important composers in Europe and the Americas, showcasing twelve masterpieces that have marked the last half-century and reflect the aesthetic plurality of the time.
Come 2024, Music & Revolution will inevitably have 25 April and the commemoration of its 50th anniversary as its driving force.