À VOLTA DO BARROCO
As palavras contam sempre – de onde vêm, como foram e são interpretadas, como são escritas, usadas, transformadas em armas, proibidas ou banalizadas. Não se sabe ao certo a origem da palavra ‘barroco’, como nunca se sabe muito bem os caminhos que fazem as línguas quando o seu nomadismo é honrado e o erro é uma virtude – o erro da errância, claro está. O termo terá vindo da Península Ibérica, muito possivelmente de Portugal e através do árabe, onde designava uma pérola de forma irregular. O ‘barroco’, enquanto termo que serve para designar o período das artes que compreende o século XVII e metade do século XVIII, estava longe de ser conhecido pelos artistas da época.
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Na verdade, nas suas primeiras aparições foi usado de modo pejorativo: em 1750, um prestigiado viajante chamado Charles de Brosses lamentava que a fachada do palácio Pamphili, em Roma, tivesse sido reconstruída com ornamentação “mais própria para talheres”, e chamou-lhe precisamente “baroque”. Excesso de ornamentação, complexidade, voltas e reviravoltas decorativas que incomodavam alguns, mas fascinaram muitos outros. E se é certo que serviu para a recuperação criativa de edifícios medievais, que hoje consideraríamos historicamente abusiva, acrescentou maravilhas às várias artes que ainda hoje podemos apreciar. Por exemplo, na Sé do Porto fez-se o retábulo da capela-mor; nas igrejas de Santa Clara, da Ordem Terceira ou de Santo Ildefonso, encontramos uma grande riqueza em talha dourada e azulejos do século XVIII; para não falar na Igreja e Torre dos Clérigos, obra-prima de Nicolau Nasoni, e isto sem sair do Porto.
Alguns dos maiores centros musicais daquela época encontravam-se na Península Itálica, e foi precisamente aí que despontou o Barroco nas várias artes, em cidades como Roma, Veneza e Nápoles. Numa altura em que o nosso país beneficiava dos lucros da expansão marítima, o rei D. João V investiu na italianização da Sé Patriarcal e da Capela Real, com o envio de bolseiros a Itália e a contratação intensiva de prestigiados músicos italianos. Um deles foi Domenico Scarlatti, que em Portugal escreveu muitas das suas sonatas para teclado, e que teve contacto com Carlos Seixas, organista e compositor português que se tornou notável no meio musical de Lisboa. E é por isso que, nesta edição do festival À Volta do Barroco, a nossa orquestra dedicada à ‘interpretação historicamente informada’ de música antiga se volta para a obra destes dois grandes compositores. O convidado especial é o maestro e cravista Andreas Staier, um dos intérpretes mais aclamados de Scarlatti. Uma oportunidade imperdível para ouvir a excelente prestação da Orquestra Barroca Casa da Música, com um repertório brilhante que já foi gravado junto de Staier no disco À Portuguesa.
Há outras vertentes que nunca são esquecidas neste festival e lhe dão uma personalidade muito especial. Em primeiro lugar, a originalidade do Barroco será sempre mais bem entendida quando confrontada com o antes e o depois. Daí as pontes com a polifonia renascentista portuguesa – o antes –, esse repertório magnífico que o Coro Casa da Música nos propõe apreciar no último concerto deste festival. Considerado o pai da sinfonia, Haydn – o depois – está presente num programa da Orquestra Sinfónica com a sua Sinfonia Fúnebre. Não é aleatória a escolha desta obra, marcada pelas linhas claras e formas perfeitas que caracterizam os clássicos vienenses. Na verdade, foi uma das grandes inspirações do português João Domingos Bomtempo para a composição do seu Libera Me, incluído no mesmo concerto. Para a mesma noite de sexta-feira, dia 8, convidamos o acordeonista João Barradas, Artista em Associação da temporada, para provar em palco que a música de Johann Sebastian Bach é realmente um tesouro universal, com amplas possibilidades para se reinventar três séculos depois da sua criação. Nas mãos hábeis de um solista de dimensão mundial, o Concerto em Ré menor BWV 1052 é uma maravilhosa surpresa.
E não podíamos deixar de falar da outra vertente do festival: as pontes com o presente, a nova música que nasce ainda como resultado das inovações do Barroco. O concerto como obra musical que confronta solistas e um conjunto orquestral permanece um meio de expressão favorito dos compositores, o que fica patente com a música trazida pelo Remix Ensemble, em que são solistas a flauta (por Stephanie Wagner), o piano (por Jonathan Ayerst) e o violino (por Carolin Widmann), em partituras recentes de Luca Francesconi, Philippe Manoury e Kaija Saariaho.
A viagem no tempo começa no dia 8 e estende-se até ao dia 17 deste mês. Reserve já o seu lugar para mais uma edição do festival À Volta do Barroco.