Um Despertar Necessário

Ser-se mulher no mundo das artes – e não só – foi demasiadas vezes difícil ou até impossível. A sua presença enquanto musas inspiradoras foi redutora. A sua aceitação condicional em universos identificados como “femininos” foi muito pouco para mulheres tenazes como Augusta Holmès, compositora parisiense do século XIX, quase apagada da história e recuperada nesta série de concertos. A Casa da Música celebra as mulheres na música, sejam elas autoras, maestrinas ou intérpretes, sejam protagonistas da obra artística – num propósito que não se esgota aqui e cada vez mais se faz refletir na programação anual.
A abertura da narrativa está marcada para 8 de março, Dia Internacional da Mulher, data que remete para as lutas históricas travadas por trabalhadoras de diversas partes do mundo: reivindicações por direitos laborais, pelo direito ao voto e por um futuro sem fome nem guerra. Ustina Dubitsky, vencedora do Prémio Orquestra no Concurso La Maestra em 2022, faz as honras e dirige um programa que dá destaque a Yeol Eum Son, pianista sul-coreana elogiada pelo impressionante controlo técnico e pela profunda empatia com o temperamento emocional das obras do seu vasto e impressionante repertório. Ainda no mesmo dia, a Digitópia propõe o espetáculo XX, dedicado a percorrer diferentes gerações de compositoras que tiveram um papel central na transformação da música eletrónica. O concerto conta com duas intérpretes portuguesas, Stephanie Wagner e Sofia Costa, e com um live act de Francisca Martins.
Segue-se uma noite protagonizada por Ana Maria Ribeiro, flautista da Orquestra Sinfónica do Porto Casa da Música, que será solista numa obra de grande beleza poética, amplamente apreciada pelos intérpretes do instrumento. Já noutro concerto, o Remix Ensemble entrega a batuta a Susanne Blumenthal, uma das figuras mais versáteis da sua geração, capaz de transitar entre música contemporânea, improvisada, jazz, projetos interdisciplinares e programas orquestrais mais convencionais.
Nas estantes não podiam faltar obras escritas por mulheres. A Sinfónica evoca Lili Boulanger (1893-1918), um dos génios precocemente perdidos para a história. Criança-prodígio, cresceu num ambiente profundamente musical, tal como a sua irmã, Nadia Boulanger, que se tornaria uma das mais influentes figuras do ensino da composição do século XX. Fez história ao tornar-se, em 1913, a primeira mulher a vencer o prestigiado Prix de Rome, com Faust et Hélène, obra composta em apenas quatro semanas. Ainda em território francês, resgata- se a música de Augusta Holmès (1847-1903), cujo percurso contrasta com o de Lili. Ao contrário do apoio recebido pelas irmãs Boulanger, Holmès enfrentou forte oposição familiar. Apesar das adversidades, conseguiu impor-se como compositora na sua época. A sua obra, grandiosa e de fôlego épico, inspira-se frequentemente na mitologia clássica, e a própria escreveu libretos para as suas peças corais, vocais e operáticas. O carácter vigoroso e enérgico da sua música valeu-lhe a classificação de “masculina” ou “viril” – rótulos que evidenciam os preconceitos do seu tempo.
Mas as propostas que apresentamos não se esgotam no passado. Num salto para o presente, explora-se o catálogo de Liza Lim, Compositora em Residência na Casa da Música em 2025. O trabalho de Lim foca-se na criação de música baseada em práticas colaborativas e transculturais, explorando temas como beleza, fúria, ruído, conexão ecológica e linhagens espirituais femininas. A primeira obra apresentada, Sappho/Bioluminescence, integra um ciclo orquestral que vai ser interpretado na íntegra ao longo do ano na Sala Suggia, Annunciation Triptych: Sappho, Mary, Fatimah. Nesta ocasião, a partitura que vamos poder ouvir evoca Safo, a célebre poeta grega cujos versos fragmentados resistiram à passagem do tempo, preservando uma beleza que continua a inspirar artistas de diferentes épocas. Ainda imersos no universo de Lim, Speak, be silent reflete sobre os limites da definição de “concerto”. Uma obra para ensemble de 15 músicos e que contará com o violino no papel de solista. O alinhamento inclui também a estreia mundial de the unreachable shore, de Yiran Zhao, cuja abordagem composicional se tem focado na exploração da fisicalidade da performance, incorporando o corpo humano e outros objectos não convencionais como elementos sonoros. A narrativa culmina com uma obra de Olga Neuwirth, considerada a enfant terrible da cena contemporânea austríaca. Internacionalmente reconhecida pela versatilidade da sua linguagem musical, Neuwirth ultrapassa fronteiras para explorar novas possibilidades sonoras e traçar o desconhecido. A sua produção emocionante e relevante ao longo dos últimos 30 anos tornou-a numa das personalidades mais célebres do mundo da arte contemporânea. Na obra que se escuta na Casa da Música, a compositora homenageia um dos seus ídolos, Klaus Sperber (conhecido como Klaus Nomi), o icónico cantor da cena queer que ficou célebre por combinar a estética new wave com elementos operáticos.
Neste ciclo, também os homens são chamados a celebrar as mulheres: Leoš Janáček contou a história trágica de Jenufa, uma mulher amada por dois homens, Beethoven teve em Leonora a protagonista de Fidelio, e Mark-Anthony Turnage escreveu uma ópera sobre a figura trágica de Anna Nicole Smith.