A POESIA CORTANTE DE UM AMOLADOR

À luz de hoje, em que o espectro da extinção se abate sobre um conjunto de profissões outrora indispensáveis, seria mais fácil descortinar o significado profundo de uma obra como Experimentum Mundi, de Giorgio Battistelli, do que aquando da sua estreia na Casa da Música, a 30 de março de 2013. Com o subtítulo “Uma dramaturgia do trabalho”, a peça, escrita em 1981, trazia já um lastro de 400 apresentações, coisa rara no contexto da música contemporânea, mas apenas uma vez o compositor italiano havia aceitado trabalhar com um elenco local. E que elenco: tanoeiros, carpinteiros, amoladores, ferreiros, calceteiros, sapateiros, trolhas, um pasteleiro, um pedreiro, um coro comunitário feminino, um percussionista e um ator-recitante. Entre as premissas de Experimentum Mundi destacava-se justamente a de “provocar” o sistema mensurável da música erudita ocidental com os ritmos assimétricos dos ofícios artesanais – e, pelo caminho, proporcionar aos artesãos uma compreensão diferente da importância do que faziam, da dignidade e história das suas mestrias.

A responsabilidade do casting, de que nunca antes Battistelli prescindira, coube ao Serviço Educativo da Casa da Música. Uma tarefa tanto mais arriscada quanto se tratava de pessoas sem qualquer familiaridade com o palco, escondidas na solidão das suas pequenas oficinas, se as tinham, porque havia entre elas um denominador comum de precariedade e situações de desemprego. A entrega e a atenção de todos, porém, no processo de trabalho, cedo fez ver que não seria caso para alarme. Ainda assim, o ambiente antes da estreia era de tensão, como recorda o fotógrafo José Miguel Nogueira, cujas imagens do último ensaio dão corpo a um livro editado pela Casa da Música: “Senti o nervoso das vozes e a responsabilidade do momento nos gestos dos artesãos que se preparavam para colocar a sua arte ao serviço da música contemporânea. O pasteleiro que passara a noite a fazer pães-de-ló para a Páscoa marcava o ritmo de forma irrepreensível com o instrumento de bater os ovos, enquanto os outros olhavam atentos os gestos do maestro que tinham aprendido a interpretar. O momento era tão singular que tinha de ser captado”. E tudo terminou num êxito rotundo, unindo público e crítica especializada sob adjetivos rasgadamente elogiosos como “memorável” ou “transcendente”. Para os artesãos foi, claro, uma experiência transformadora. Muitos confessaram-no verbalmente, em depoimentos registados no supracitado livro. Mas um, em particular, demonstrou-o de uma forma enternecedora. Chamava-se Vítor e era amolador, um homem discreto, de emoções contidas, algo triste. Trouxe consigo bigorna, torno de bancada, berbequim, limas, mandris, polidores, escofinas, tenazes, serras, pinças e toda uma parafernália de ferramentas. Ao contrário dos colegas de palco, não as levou logo de volta. Deixou-as ficar. Depois, dia após dia, veio buscar uma de cada vez. Nunca explicou porquê, mas talvez nenhum outro gesto tenha simbolizado tão poeticamente o desígnio de Battistelli: a comunhão entre a arte e o ofício.