2025 – Caminhos Cruzados
A ainda curta história da Casa da Música é também uma história de encontros – uns premeditados, outros furtuitos – dos quais resultaram tantas vezes novos projectos, cumplicidades artísticas, oportunidades para artistas portugueses, desafios irrecusáveis, partilhas felizes entre profissionais e amadores, entre a rua dos excluídos e a Casa sem muros, por vezes amizades. Cruzamentos.
Elemento fulcral nessa história de encontros e cruzamentos tem sido o recurso, sistemático e estrutural, a temas extramusicais nas narrativas da programação, uma forma de convidar e induzir o público a fazer um exercício de inter-relacionamento entre várias formas de Arte e Conhecimento, entre grandes temas da Humanidade e a Música, sejam eles socioculturais, históricos, religiosos, políticos, sazonais ou multidisciplinares. Esta é uma estratégia que, além de conter um potencial de enriquecimento cultural e cívico do público, pode ser uma ferramenta distintiva e comunicativa para chegar a públicos mais diversificados.
A criação dum fio condutor principal para cada temporada – um país, uma região ou uma entidade geográfico-cultural – e um programa de Compositores e Artistas em Residência, jovens e consagrados, levou-nos a um questionamento constante dos modos mais tradicionais de programação, com especial impacto na Orquestra Sinfónica, Remix Ensemble, Orquestra Barroca, Coro, Coro Infantil, Serviço Educativo e Digitópia, que estimulou a criatividade, convidou a uma pesquisa e atualização constantes do repertório e dos artistas. Enfim, que focou o trabalho de uma programação que se deseja comunicativa e comunicante.
Esta opção programática, multitemática e multifacetada – de que o próprio edifício é metáfora –, introduziu uma dinâmica única e em constante evolução que vai projectando a Casa da Música na posteridade, com plena consciência das suas responsabilidades mediadoras, educativas e sociais. Uma opção pela diversidade de géneros musicais – e dentro dos géneros musicais – tendo por base linhas de acção aderentes à missão de serviço público duma Instituição Cultural que, sempre atenta a novas realidades e preparando-se para novos desafios (societais, artísticos e tecnológicos), quer manter um rumo coerente e legível para as “partes interessadas”; que não se precipita face às voláteis mutações de um ecossistema cada vez mais dependente de modismos comunicacionais e lógicas de puro entretenimento. Com a eleição de Portugal como país-tema, a Temporada de 2024 marcou o fim de um ciclo, pensada como ponto culminante duma certa forma de articulação programática entre um discurso e uma prática, entre uma ideia e a sua realização.
Em 2025, a Casa da Música celebra o seu 20.º Aniversário, preparada para percorrer novos caminhos e para a criação de temas eventualmente mais abertos, conhecedores do passado e sempre interpeladores de futuro. Pedia-se uma nova narrativa que, por um lado, propusesse uma saudável, aberta e oportuna discussão sobre a génese do projecto artístico, o seu desenvolvimento – e suas controvérsias – e a realidade actual da Casa, e que, por outro, abrisse portas para novos paradigmas, novas inquietações, novos paradoxos.
O tema Caminhos Cruzados impôs-se como fio condutor da nova Temporada, com o seu quê de redundante (afinal, tantos caminhos da música, tantos artistas, tantas comunidades se têm todos os anos cruzado, na Casa e na Cidade), mas, talvez por isso, síntese legível e conceito aberto a uma multiplicidade de perspectivas da programação e seus modos de recepção.
Cruzamentos insuspeitos e inesperados, novas constelações temáticas transversais a todos os Agrupamentos Residentes e a vários géneros musicais, inspiradores de colaborações artísticas inéditas e propostas de novas viagens para o público e a comunidade, terão especial ênfase na programação de 2025. Os caminhos da música cruzam-se tanto em latitude e longitude quanto se podem cruzar nos mais variados géneros, assim como, noutro plano, se procura evidenciar o quanto a música erudita entronca em raízes populares e a música popular pode ir beber a fontes eruditas.
Nesse sentido, os próprios Compositores em Residência em 2025 encarnam, cada um a seu modo, essa ideia de cruzamento: Liza Lim (1966), australiana, filha de pais chineses, educada no canon musical ocidental, incorpora com fluidez discursiva e integridade artística preocupações ambientais, sonoridades da música aborígene ou da tradição chinesa. É uma das compositoras mais requisitadas no circuito internacional da última década. A sua música elaborada e expressiva cativa músicos e público pela sinceridade e por um domínio muito próprio de uma vasta paleta de cores, timbres e combinações rítmicas. Pela mão da Orquestra Sinfónica e do Remix Ensemble ouviremos um conjunto notável de obras inéditas em Portugal, incluindo um novo concerto para violoncelo, encomendado em parceria com grandes instituições internacionais, das quais se destacam o musica viva / Bayerischer Rundfunk e a Royal Concertgebouw Orchestra;
João Carlos Pinto (1998), tem-se revelado um dos criadores mais sólidos e originais da nova geração. Compositor, intérprete e performer multimédia, revelando um conhecimento consistente da tradição, é um exemplo do artista multidisciplinar neste início do segundo quarto de século.
Logo no festival de Abertura da Temporada, em janeiro, o público encontrará o enunciado e chaves de leitura de algumas das principais linhas programáticas de Caminhos Cruzados. Uma multitude de realidades culturais estará em diálogo nos programas dos concertos e em atividades paralelas. O principal fio condutor da temporada desfia-se ao longo de duas semanas de programação intensa e diversificada, durante as quais será dado a ouvir um conjunto significativo de obras em primeira audição em Portugal.
• A influência da cultura árabe na produção musical ibérica ficará enunciada no concerto de Abertura Oficial, com a Orquestra Sinfónica a interpretar obras bem conhecidas de Francisco de Lacerda, Manuel de Falla, Ravel e Rimski-Korsakoff;
• A Orquestra Barroca será dirigida pela primeira vez pelo cravista de origem iraniana Mahan Esfahani, uma estrela mundial da música barroca, num programa que evoca Berlim como centro de cruzamento de influências e artistas;
• A retrospectiva da obra de Liza Lim inicia-se com o Remix Ensemble na estreia nacional do “concerto” para ensemble e sheng, o fascinante órgão de boca chinês, que trará ao Porto o seu mais lídimo intérprete, Wu Wei. No mesmo concerto, o inter-relacionamento entre as músicas urbanas e contemporâneas na produção de Steve Reich estará patente na estreia em Portugal da sua última obra, fruto de uma encomenda conjunta da New York Philharmonic, da Casa da Música e de outras instituições internacionais;
• No segundo concerto da Orquestra Sinfónica cruzam-se (não sem alguma ironia) os clichés do exotismo imaginário da Índia às influências do jazz na música sinfónica alemã e americana. No centro do programa, outra obra brilhante de Liza Lim pela sua intérprete de referência, a renomada pianista Tamara Stefanovitch;
• Como Anoitecer um Pirilampo, Segundo o Dr. Qwrtzfgtlvskh é mais uma estreia dum espetáculo cénico para famílias onde, além da música e boa disposição que habitualmente estão presentes nas produções do Serviço Educativo, se cruza a botânica com o bel canto;
• O fascínio dos compositores do romantismo pela errância e pela cultura e folclore do povo cigano estará patente no concerto com que o Coro Casa da Música encerrará o festival inaugural.
Janeiro dar-nos-á ainda a abertura do Ciclo de Piano, dos Programas Future Rocks, Future Jazz, Novos Valores da Música Erudita, Novos Valores do Jazz e Novos Valores do Fado e da Guitarra Portuguesa, e ainda da 16.ª edição do Curso Livre de História da Música.
Muitos outros exemplos de diálogos de possibilidades infinitas – oportunos como nunca – irão emergindo ao longo do ano, em boa medida induzidos por obras encomendadas ou simplesmente inéditas nos palcos portugueses. Alguns momentos ilustrativos, para além dos já citados, serão:
• Last Spring in Toronto, a única obra conhecida para gamelão e orquestra, do norte-americano James Tenney. Uma verdadeira raridade e uma oportunidade única que poucas salas de concerto podem proporcionar;
• Hommage à Klaus Nomi, da austríaca Olga Neuwirth; uma “recomposição” para ensemble e voz de canções do repertório de Klaus Nomi, o contratenor pop que se tornou um ícone do início dos anos 80;
• A estreia da nova obra de Igor C Silva para orquestra, electrónica e quatro improvisadores da área do jazz;
• A estreia mundial do primeiro concerto da história para sintetizador e orquestra, encomendado pela Casa da Música ao compositor, produtor e DJ Gabriel Prokofiev, autor das mais bem conseguidas obras techno-sinfónicas;
• O rock vanguardista do génio iconoclasta Frank Zappa nas estantes do Remix Ensemble, dirigido por Peter Rundel, o maestro da estreia da obra de culto Yellow Shark;
• Os concertos do ciclo À Volta do Barroco, em que se cruzam com critério o contemporâneo e o barroco.
Das novas constelações temáticas da Temporada haverá ainda que enunciar Mulheres na Música (março), 20.º Aniversário da Casa da Música (abril) e Repercussões (setembro), todas pensadas para estimular o cruzamento de géneros musicais, culturas, tradições, fronteiras físicas ou mentais.
Mantêm-se as Narrativas “históricas” na grelha da programação, Invicta.Música.Filmes (fevereiro), Rito da Primavera (maio), Verão da Casa (junho/julho/setembro), Outono em Jazz (outubro), À Volta do Barroco (novembro) e Música para o Natal (dezembro).
Os tradicionais Concertos de Páscoa serão neste ano integrados no Ciclo irrepetível do 20.º Aniversário da Casa da Música, com uma programação que promete grande música, reflexão, alguma provocação e festa. Até porque em 2025 se celebram dois outros momentos que deram um novo rumo à vida musical portuguesa nas vésperas do Séc. XXI: os 25 anos do Remix Ensemble e os 25 anos da formação sinfónica da nossa Orquestra. Fica o convite para um mergulho vagaroso e atento nesta agenda da programação 2025, com a forte convicção de que aqui encontrarão todos os motivos para vir com ainda maior frequência à Casa da Música. Sejam sempre muito bem-vindos!
António Jorge Pacheco
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia