De que falamos quando falamos de Jazz?

Esta é uma pergunta que acompanha a natureza expansionista de um género aberto a quase todas as influências culturais. Será então o jazz uma maria-vai-com-as-outras? Ou uma procura incessante do horizonte por parte de espíritos artísticos pouco propensos a cristalizar-se numa identidade? Ou tantas coisas no meio e à volta disso? Seja o que for, não parece que a demanda de lhe definir limites conceptuais esteja fadada ao sucesso ou sequer que tenha pertinência. A liberdade constitui o jazz, o amor constitui o jazz, e não há casal que encaixe melhor na perspetiva romântica de se ser feliz para sempre. Longa vida, pois, a esta borboleta que vemos pousar em todas as flores e absorver delas as cores e os perfumes mais distintos para nos surpreender e encantar no voo, fazendo cair sobre nós a consciência do erro que é querer tê-la entre os dedos.

Há mais de 10 anos que a Casa da Música programa o Outono em Jazz de acordo com tal premissa. A diversidade e oesbatimento de fronteiras estéticas têm atravessado a existência deste festival ao cair da folha, sempre predisposto a revelar novas explorações da matéria sonora que, venham elas de onde vierem, empurrem para a frente o sentimento do que é jazzístico. Projetos consagrados coabitam os sucessivos cartazes com vozes emergentes que merecem ser ouvidas. E em 2024, quando se comemora o cinquentenário do 25 de Abril, a luta continua. Como num cubo mágico, apresentamos múltiplas faces do jazz, todas elas capazes de dialogar com as outras e de, sem perder o que as diferencia, habitar um corpo comum.

A primeira proposta vem, desde logo, confrontar-nos com uma formação improvável: tuba e piano. É o Duo XL de Sérgio Carolino, um dos mais prestigiados tubistas do mundo, e Telmo Marques, pianista e compositor de craveira tanto na clássica como no jazz. Depois de terem lançado o álbum Game Over, diálogo de personalidades e instrumentos criando narrativas entre o lirismo e a densidade, entregam-se agora ao groove, num novo registo discográfico que apresentam em primeira mão.

Carlos Martins, por sua vez, serve-nos um primeiro dar de mãos entre dois patrimónios culturais imateriais da humanidade: o jazz e o cante alentejano. O saxofonista e compositor exorta-nos a atentar no valor do tempo, da pausa para a escuta, do exercício contemplativo – daí o título do álbum que corporiza este encontro de amores: Vagar. É o seu primeiro disco integralmente preenchido por músicas cantadas e conta para isso com uma mescla de jovens e seniores intérpretes do cante alentejano.

Mestre italiano do jazz espiritual, DJ, produtor e guitarrista, Nicola Conte foi-se tornando, desde o início dos anos 90, uma instituição da cena jazzística de dança, ao fundir o jazz profundo com a genealogia da soul e as latinidades e africanidades mais diversas. Nome de catálogo de editoras míticas como a Blue Note ou a Impulse!, entre outras, vem também munido de novo álbum – o exultante Umoja, palavra que significa harmonia em suaíli – e faz-se acompanhar de um supergrupo com estrelas provenientes dos quatro cantos do mundo.

Comunidade é a palavra-chave quando falamos do XJAZZ!, festival que surgiu pouco depois do nosso e cedo se converteu numa pedra angular da cultura berlinense. Em Entangled Grounds. The Sounds of XJAZZ! Berlin – mais um álbum novo, para não variar – é condensada a experiência coletiva dos inúmeros músicos e projetos que têm feito a história do certame. A nós chegam-nos dois deles: Àbáse e Sera Kalo. O primeiro, nome artístico do teclista húngaro Sazbolcs Bognár, tece grooves cósmicos a partir de uma mistura requintada de jazz, hip hop, eletrónica e sonoridades do Brasil e da África Ocidental; a segunda, uma cantora e compositora caribenho-americana, imprime melodias de soul futurista na sua fluida e serena fusão de géneros, onde ritmos não convencionais pontuam atmosferas eletrónicas de apurada sensualidade. Não estaremos longe do paraíso ao ouvir Eduardo Cardinho, se levarmos à letra o título do seu novo álbum, Not Far From Paradise, para o qual contribuíram alguns dos melhores músicos da mais recente geração do jazz português. É um registo alquímico, de escrita sóbria e inspirada, cujos ingredientes vão do jazz ao rock, do hip hop à eletrónica, da música brasileira a fusionismos dos anos 70, confirmando Cardinho como um vibrafonista de enorme talento e criatividade.

Na mesma noite, entra em cena o furacão Flat Earth Society, uma big band belga de filiação zappiana com gosto por arranjos de metais complexos, ritmos dinâmicos e arriscadas fintas musicais, que traz debaixo do braço o revolucionário The One, uma ode à diversidade contra a obsessão contemporânea pela verdade única. É difícil não nos sentirmos empolgados perante a energia e a fantasia delirantes desta grande máquina de música.

Para algo completamente diferente temos o Trespass Trio – de Martin Küchen, Per Zanussi e Raymond Strid – e Susana Santos Silva, num concerto centrado em Live in Oslo, disco editado há um ano pela Clean Feed. É um encontro particularmente feliz entre as composições melancólicas, sombrias e cinematográficas do trio nórdico e a abordagem improvisacional singular da trompetista portuguesa, que abre uma nova e crepitante frente melódica no fogo lento da música. Uma simbiose telepática, ao ritmo da vida.

Acordeonista que a Casa da Música tem este ano como Artista em Residência, João Barradas continua a surpreender tudo e todos com a conexão criativa e moderna que promove entre a música clássica e o jazz, contribuindo significativamente para aumentar a presença do seu instrumento em contextos menos comuns. Neste concerto, o trio que lidera junta-se ao saxofonista e compositor norte-americano David Binney para estrear em palco o projeto discográfico Aperture. Claramente, um momento a não perder.

O mesmo se dirá de outra estreia: a do trio composto por Cristóvão Bastos (piano), Jorge Helder (contrabaixo) e Ricardo Silveira (guitarra), mestres nos seus instrumentos, compositores de eleição e parceiros musicais imprescindíveis de praticamente todos os nomes maiores da música brasileira. O formato em que se apresentam, pela primeira vez na vida, responde a um desafio vindo de fora e adquire estatuto de acontecimento. Um concerto assente em composições de cada um dos três, com António Zambujo como convidado especial.

Os elogios de fontes insuspeitas a Chico Pinheiro falam pela importância deste guitarrista e compositor brasileiro no contexto do jazz atual. Pat Metheny, Brad Mehldau, Dianne Reeves, Moacir Santos ou Edu Lobo são apenas alguns dos vultos da música que já se renderam publicamente à dimensão artística de Pinheiro, um virtuoso de enorme sensibilidade musical que funde a saudade brasileira com o swing norte-americano. Por fim, o Outono em Jazz dá-nos a conhecer o duo que une a cantora e compositora Vera Morais ao saxofonista e compositor Hristo Goleminov na exploração de linhas entre a poesia e a improvisação. O álbum que editaram, Consider the Plums (Carimbo Porta-Jazz), tem por base poemas selecionados de William Carlos Williams.

E pronto. Feitas as contas à diversidade de projetos que integram a presente edição do festival, resta-nos uma conclusão simples: tudo isto é lindo, tudo isto é jazz.

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