Peter Rundel: “Emmanuel Nunes deixará uma marca duradoura na música contempoânea”

Peter Rundel

Entrevistado pelo diretor artístico da Casa da Música, António Jorge Pacheco, o maestro titular do Remix Ensemble, Peter Rundel, fala sobre o seu percurso de trabalho com Emmanuel Nunes, abordando também aspetos da personalidade de um dos maiores compositores portugueses de sempre, de quem escutaremos as obras Nachtmusik II e Duktus já em janeiro, no festival de abertura da Temporada, Portugal 2024 – À Nossa!.

Lembras-te de quando conheceste pessoalmente Emmanuel Nunes?

Acho que sim, embora não consiga precisar a data. Terá sido no final dos anos 80. Sei que foi na estreia de “Wandlungen” em Donaueschingen. Eu era violinista do Ensemble Modern, e como em “Wandlungen” há uma passagem importante para trio de cordas, tive a oportunidade de trabalhar com o Emmanuel de maneira bastante próxima e intensa. Desde o início, fiquei realmente impressionado tanto com sua personalidade quanto com a música excecional que ele estava a compor.

Qual foi o impacto das sessões de trabalho, principalmente nessa parte do trio? Houve algum momento mais pessoal, como sair para tomar um copo e sociabilizar?

Sim, foi tudo muito rápido. E isso não teve, nessa altura, nada a ver comigo pessoalmente, acho. Foi para ele foi muito importante trabalhar com um grupo como o Ensemble Modern, onde todos estavam extremamente motivados para dar o melhor. E o maestro era Ernest Bour, que estava incrivelmente preparado. Ele permaneceu, para mim também, até agora, como uma espécie de ídolo de maestro de estreias mundiais, especialmente porque tirava o tempo necessário para preparar tudo ao detalhe. O Emmanuel sentiu-se realmente seguro. Houve desde logo uma espécie de confiança, na qual ele também me incluiu. E quando o Emmanuel se sentia seguro… tu sabes como ele era… E depois tinha um sentido de humor maravilhoso. É claro, ao longo dos anos trabalhámos juntos em muitas ocasiões. Até que, mais tarde, quando enveredei pela carreira de maestro, rapidamente comecei a ser convidado para dirigir algumas das suas obras, muitas delas em estreia.

Em 1991 foi estreada no Coliseu de Lisboa uma das suas peças mais conhecidas, “Quolibet”, para dois maestros, orquestra, grupo de percussão e um ensemble espacializado e “ambulante”, em que certos músicos tinham de se mover de lugar para lugar e tocar num momento cronometrado ao segundo. Foi propositadamente criado um dispositivo com vários relógios sincronizados e colocados de forma visível para músicos e maestro. Na estreia tocaram a Orquestra Gulbenkian, o Ensemble Modern e Les Percussions de Strasbourg. Recordas-te desse momento?

Por qualquer razão, eu não toquei na estreia. Mas, como músico, toquei a obra mais tarde. Em Veneza, por exemplo…

Sim, “Quodlibet” teve um sucesso internacional assinalável. Depois da estreia, foi tocado no Festival d’automne de Paris, na Biennale de Veneza, no Konzerthaus de Freiburg, no Festival Musica Strasbourg, no Concertgebow de Amesterdão, em Basel, no Coliseu do Porto e na Casa da Música (já com o Remix Ensemble)… seguramente mais de quinze vezes, apesar da complexidade da produção.

Acho que devo ter tocado duas ou três vezes. É uma obra incrível.

“Quodlibet” ainda mantém uma aura especial. É uma obra muito peculiar. Claro, a utilização do espaço enquanto parâmetro da música não era novo, mas o fascínio que obra ainda hoje exerce é algo especial.

Sim, não era novo, mas da maneira como ele o fez foi totalmente novo. Acho que ele foi mais longe do que muitos antes dele e também depois dele, porque a ideia de músicos que têm de se deslocar constantemente era, pelo menos eu acho, algo em parte novo. A deslocação da fonte sonora no espaço desempenha um papel realmente importante na sua música, e esta é a peça em que ele explorou ao máximo as suas possibilidades.

A música que Emmanuel Nunes nos deixou é realmente muito valiosa, e é importante que continuemos a tocá-la, como faremos já este mês na Casa da Música.

Ah, sim. E para mim, que não a dirijo há alguns anos… estou realmente ansioso por encontrá-la novamente, tocá-la novamente, estudá-la novamente. E em tempos como os que temos agora, onde muita da música contemporânea é mais “simples”, eu diria, é um desafio, e não apenas para mim, também para os músicos. Estou, é claro, a pensar no meu ensemble, o Remix Ensemble. É extremamente refrescante ser desafiado pela multidimensionalidade, pela complexidade da sua música, que não é fácil, mas é rica e…

Aspeto pouco referido, dotada de uma sensualidade talvez inesperada!

Absolutamente. Sensualidade na música do Emmanuel não é algo de que muitos esperassem ouvir falar, mas ela está lá. Basta que tenhamos disponibilidade para a querer ouvir.

Como sabemos, o Emmanuel era muito exigente com quem trabalhava consigo, mas, antes de tudo, era ainda mais exigente consigo mesmo. Não tolerava amadorismos ou falta de integridade, musical ou qualquer outra.

Exatamente, antes de tudo, consigo mesmo. É difícil imaginar, com as suas dificuldades motrizes, o esforço que tinha de fazer para manuscrever as suas partituras tão complexas e normalmente longas.

Só com uma determinação completamente fora do vulgar… Mas estamos muito interessados em deixar os nossos leitores saberem qual foi a primeira peça de Emmanuel Nunes que dirigiste.

Acho que foi “Nachtmusik I”.

Uma das obras para ensemble ainda hoje mais tocadas um pouco por toda a Europa. Já voltaremos a ela…

Absolutamente. É uma peça maravilhosa, para um pequeno ensemble e eletrónica ad libitum. Muitas outras peças se seguiram depois disso. Dirigi todo o ciclo “Lichtung”, quase toda a música para ensemble… tanta coisa.

É verdade que com o Remix Ensemble tu dirigiste, em Portugal e em muitos grandes centros europeus, praticamente todas as grandes peças para ensemble do Emmanuel. O concerto na Philharmonie de Berlim com “Improvisation I – Für ein Monodram” foi memorável.

A relação que o Emmanuel criou com o Remix Ensemble era muito especial. Lá está, ele tinha uma relação de confiança total com os músicos e eles entregavam-se à sua música com uma dedicação incrível. A partir de dada altura, quando algum festival lhe propunha tocar a sua música, ele recomendava imediatamente o Remix Ensemble.

Era difícil dizer não a uma “recomendação” do Emmanuel. Mas voltando a “Nachtmusik I” – tu tinhas uma relação especial com esta obra. Recordo-me da tua famosa aparição no filme Porto da Minha Infância, de Manoel de Oliveira, em que estás a dirigir exatamente um ensaio de “Nachtmusik I”.

Sim, estou lá. O Manoel de Oliveira tinha estado no concerto em Serralves, em que eu dirigia “Nachtmusik I” com o Ensemble Ictus. Acho que ele gostou da minha careca vista de trás (risos).

Poucos anos depois, o teu primeiro projeto como Maestro Titular do Remix Ensemble, em janeiro de 2005, começou com uma residência e um concerto no IRCAM, em Paris, que antecedeu o concerto no Porto. No programa estava “Nachtmusik I”, com eletrónica operada pela equipa do IRCAM.

“Nachmusik I” foi realmente uma obra pioneira porque o Emmanuel já estava a pensar [desde “The Blending Season”] em como combinar música ao vivo com eletrónica em tempo real. E “Nachmusik I” é uma peça em que ele experimenta a interação entre o ensemble e a eletrónica. Em tempo real quer dizer que os sons dos instrumentos captados pelos microfones são instantaneamente recebidos por um computador que os transforma da forma como foi pré-programado. E isso, na época, era algo bastante inovador e precursor do que vemos agora em muitas composições contemporâneas, onde a eletrónica desempenha um papel significativo. Eu acho que essa peça também é especialmente distinta pela própria notação, em que o Emmanuel usa uma representação visual muito gráfica da forma como os músicos devem interagir e tocar. Acho que isso também mostra um pouco do seu pensamento inovador na época. E, claro, ele continuou a desenvolver essas ideias em peças subsequentes.

Sim, há muitos elementos inovadores na obra de Emmanuel. Como a criação de uma sensação paradoxal de mobilidade e imobilidade, a integração do, por si batizado, “par rítmico” em todos os parâmetros musicais, a forma subtil como “escondia” citações ou referências a outros compositores… Como foi para ti lidar com essa forma de criar uma notação muito particular ou interpretar uma música, a seu tempo, cerebral e sensual, como tu bem referiste?

Sim, foi desafiador, mas também muito emocionante. Porque, como músicos, nós estamos preparados para trabalhar com a notação tradicional, mas com o Emmanuel tive de realmente tentar entrar na sua mente para entender aquilo de que ele estava à procura. Em muitos aspetos ele era muito preciso, rigoroso mesmo. Mas, ao mesmo tempo, também dava muita liberdade ao intérprete para trazer a sua própria personalidade para a peça. E acho que isso é o que torna a sua música tão especial, porque é uma combinação da sua visão muito específica e única, mas também permitindo que o intérprete contribua de uma maneira significativa. É isso que torna a sua música tão viva e tão pessoal. Porque, como intérpretes, sentimos que temos de estar envolvidos no processo criativo, não apenas executando algo que foi prescrito, mas realmente contribuindo para a expressão da peça.

E como foi em geral a resposta do público às obras de Emmanuel Nunes?

A resposta do público é sempre algo interessante de observar quando se trata de compositores contemporâneos, especialmente quando confrontados com uma linguagem tão distinta como a de Emmanuel Nunes. Acho que, em geral, houve uma mistura de reações. Havia pessoas que se envolviam profundamente com a música dele e ficavam fascinadas pela sua originalidade e profundidade emocional. Mas, é claro, também havia aqueles que talvez achassem a música demasiado desafiadora. Parece-me compreensível porque a música de Emmanuel Nunes não é fácil. Ela exige que o ouvinte esteja disposto a entregar-se a uma experiência musical profunda e complexa. Mas acho que, ao longo do tempo, à medida que as pessoas se familiarizavam mais com a música dele e que mais intérpretes a apresentavam, houve um reconhecimento crescente da sua contribuição única para a música contemporânea.

E agora, olhando para o futuro, como te parece que a música de Emmanuel Nunes será lembrada e como ela influenciará as gerações futuras de músicos e compositores?

Acho que a música de Emmanuel Nunes deixará um legado significativo na música contemporânea. Ele foi verdadeiramente inovador na sua abordagem à composição, explorando novas possibilidades sonoras, notações e formas musicais. A sua música desafia convenções e convida os ouvintes a uma experiência profunda e reflexiva. Acredito que as gerações futuras de músicos e compositores encontrarão inspiração na sua originalidade e coragem artística. Além disso, o seu impacto como educador também contribuirá para moldar o pensamento musical de muitos estudantes. A sua abordagem única à música deixará uma marca duradoura, influenciando a evolução da música contemporânea. E à medida que mais músicos explorarem e aprofundarem o conhecimento sua obra, descobrirão novas camadas de significado e complexidade, garantindo que sua música continue a ser relevante e apreciada no futuro.

Nas suas estadias na Casa da Música, Emmanuel Nunes estava sempre rodeado por jovens compositores que acompanhavam os ensaios e seguiam os seus seminários. O Emmanuel sempre gostou da companhia da juventude. Por várias vezes o vi a combinar ir jantar ou beber um copo com eles. Um dia perguntei-lhe onde costumavam ir. Surpreendentemente, para mim, disse que iam quase sempre a um bar com jazz ao vivo. E começou a dissertar sobre o seu conhecimento das grandes figuras da história do jazz. Conhecendo-o há muitos anos, foi para mim uma verdadeira surpresa. Li muitas entrevistas e ensaios dos seus mais próximos exegetas e não me lembrava de nenhuma referência ao jazz. E ele, muito divertido com o meu ar de espanto…

O Emmanuel era assim, sempre surpreendente.